Falar de Ayurveda é fácil e, ao mesmo tempo, complexo, pois envolve a quebra de mitos e crenças enraizados na visão ocidental sobre este sistema de saúde. Por todo o “misticismo” envolto nas tradições e religiões indianas, muitas pessoas confundem o Ayurveda com religião ou práticas energéticas. Esse é um problema recorrente com tudo que é “importado” do oriente, e acaba romantizado ou mistificado para atender aos padrões ocidentais.

O Ayurveda é considerado, por alguns, o berço da Medicina. Difícil ter certeza, pois muito se perdeu no tempo, mas não há dúvidas de que é um sistema de saúde milenar, já que seus registros datam de cerca de 3.000 a.C. De acordo com os textos clássicos, entretanto, esse conhecimento seria muito mais antigo, pois foi transmitido à humanidade a partir de Brahma (considerado o deus criador do universo) e transmitido de forma oral (guru - aprendiz) por muitos anos.
Todo o conhecimento filosófico e científico do Ayurveda está sistematizado em obras clássicas, divididas em 2 grupos:
Brhat trayi (grande trindade):
Charaka Samhita: livro mais importante de toda a literatura clássica do Ayurveda.
Sushuruta Samhita: conhecimentos na área da cirurgia.
Ashtanga Hridayam: compilado didático dos outros textos, considerado o melhor para introdução ao conhecimento do Ayurveda.
Laghu trayi (pequena trindade):
Madhava Nidana: descrição de doenças.
Sharamgadhara Samhita: diagnósticos e tratamentos de doenças.
Bhavaprakash: receitas e formulações para tratamentos.
Mas, afinal, o que é Ayurveda?
AYU= vida
VEDA= ciência, conhecimento
Ayurveda é o conhecimento, a ciência da vida, e tem como principal objetivo a manutenção da saúde dos saudáveis, e a cura dos doentes.
De acordo com o Charaka, vida (ayu) é a combinação de corpo (shareera), órgãos dos sentidos (indryias), mente (manas) e alma (atma).
Sushuruta define saúde como “sama dosha sama agni sama dhatu mala kriyaaha prasanna atma indriya manaha swastha iti abhidheeyate” - equilíbrio dos doshas, equilíbrio da digestão, equilíbrio dos tecidos, excreções adequadas, órgão dos sentidos, mente e alma em estado de contentamento.
Vamos conversar mais detalhadamente sobre os termos citados (doshas, agni, dhatu, mala) em outros textos, mas já deixo uma pequena introdução aqui, para que o assunto não fique muito vago:
Doshas são entidades fisiológicas que governam nosso organismo, sendo responsáveis por funções vitais; em desequilíbrio, são causadores de doenças, pois passam a exercer suas funções de forma errada, e viciam órgãos, tecidos, excretas, etc. Eles são vata, pitta e kapha.
Agni é nosso poder digestivo; não apenas a digestão do alimento que comemos, mas também os processos metabólicos nos tecidos, responsáveis pela manutenção da nutrição e do bom funcionamento do organismo.
Dhatus são os tecidos que constituem o corpo. Para o Ayurveda, existem 7 tecidos: rasa (plasma/linfa), rakta (sangue), mansa (músculo), medha (gordura), asthi (osso), majja (medula), shukra (fluidos reprodutivos).
Malas são nossas excreções, aquilo que precisa ser eliminado (urina, fezes, suor) para regularização das funções fisiológicas.
Portanto, a manutenção da saúde está diretamente relacionada com o equilíbrio das funções do corpo e da mente; e o tratamento das doenças só é possível a partir da identificação e correção dos desequilíbrios.

Ingênuo pensar que orientações e tratamentos do Ayurveda podem ser realizados “identificando meu dosha e meu desequilíbrio” através de testes padronizados, amplamente disponíveis na internet.
O bom profissional de Ayurveda realiza uma investigação detalhada do cliente/paciente. Além de serem abordadas as queixas e os sintomas, é realizada uma verdadeira investigação da rotina: hábitos de higiene, funcionamento do intestino, horários (de acordar, de comer, de dormir, etc.), trabalho, escolhas alimentares, hobbies, etc. O exame físico também é realizado, com observação de marcha e postura, da pele, dos cabelos, das unhas, de lesões, avaliação da língua, dentre outros. Essas informações são importantes para avaliar a potência do agni, a presença ou não de ama (“toxina”, alimento não digerido), a nutrição dos dhatus, a localização das alterações e os possíveis doshas envolvidos, um verdadeiro “quebra-cabeças” que aponta para a origem dos sintomas. Pode ser que, nesse processo, a prakrti (constituição, o que as pessoas costumam chamar de “meu dosha”) fique evidente, mas nem sempre é algo fácil de ser identificado no primeiro atendimento.
O tratamento é todo voltado para o reequilíbrio do corpo, através de organização de horários (resgate do ciclo circadiano fisiológico), ajuste alimentar (individualizado, não existe “dieta ayurvédica” padronizada), preparações à base de plantas e terapias corporais (as “massagens”). Habitualmente, as “massagens” não são orientadas logo no início do tratamento, pois é necessário que o cliente/paciente esteja apto para recebê-las, principalmente com agni estabilizado.

As terapias corporais, ao contrário do que se pensa, não são “massagens relaxantes”, são tratamentos potentes, e com indicações precisas. Algumas são até bem desconfortáveis. A popularização desses procedimentos nos spas acabou desvirtuando um pouco suas finalidades; realizar, esporadicamente, uma massagem não é um grande problema; entretanto, algumas pessoas podem sentir-se desconfortáveis pelo “peso” dos óleos caso não estejam com boa digestão. E, como todo tratamento, elas também possuem contra-indicações.
Na Índia, também existem spas com “massagens ayurvédicas”, muito comuns em hotéis e regiões com muitos estrangeiros, mas não são vendidos como tratamentos e sim como uma experiência para turistas. Nos hospitais e clínicas, o cliente/paciente passa em consulta com um médico ayurveda (vaidya) e, quando indicadas, as terapias corporais são realizadas por assistentes (upasthatha).
Enquanto lá na Índia a formação do médico ocorre em universidades (BAMS - Bachelor of Ayurvedic Medicine and Surgery), aqui no Brasil o Ayurveda não é reconhecido como medicina ou sistema de saúde, e a formação de terapeutas se dá por meio de cursos livres, sem regulamentação específica. O Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde do SUS (PNPIC) incluiu, em 2017, o Ayurveda em seu rol de terapias, porém, na prática, são raríssimas as unidades que realizam atendimento.
Agora que você entendeu melhor o que é Ayurveda, sua dimensão e complexidade, procure conhecer bem o profissional para realizar seu atendimento e tratamento, evitando padronizações simplistas baseadas em testes. Você é um ser único, e merece um tratamento individualizado.
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